Numa curta passagem de seu artigo de 1901 sobre os malês , Etienne Brasil escreveu: "O fim primordial da conspiração era aclamar uma rainha, depois do exterminio da etnia branca." Convenhamos que, num texto de 57 páginas, o autor foi brevissimo sobre o que considerava o objetivo principal do movimento de 1835 . Não sei onde Brasil foi buscar essa idéia, um tanto extravagante, de que muçulmanos se dariam ao exaustivo trabaho de exterminar a etnia branca para colocar no poder uma mulher, aliás pagã, como se vera num minuto . Obviamente nada consta, nesse sentido , na vasta documentação existente sobre a rebelião .Nenhuma Luiza, aliás foi incluída em quaisquer das listas de presos por envolvimentos no levante . A única mulher com este nome que encontrei em 1835 foi uma liberta, presa provavelmente em novembro para ser deportada por crime não especificado,mas de forma alguma por insurreição ."
Não que as africanas tivessem um papel nulo.o na comunidade malê e mesmo na rebelião de 1935. Antes desta houve, como vimos, "rainhas"que chegaram a participar diretamente, e com armas em punho, de lutas escravas. Foi o caso de Zeferina em 1826. Na revolta dos malês encontrei mulheres que dela sabiam, apoiaram-na, uma eu talvez tenha lutado, Gertrudes, mas nenhuma que possamos conciderar em alguma posição de comando. A que talvez chegasse mais próximo disso foi Emereciana, por ter sido vista na casa de Dandará distribuindo naés que indentificavam os da "Sociedade malê, mas não é muito claro o sentido deste gesto. Ela podia estar apenas entregando a seus donos anéis deixados na casa de seu amásio Dandará . Já a preta Edum forneceu os inhames para o banquete malê na noite do levante e pelo menos mais duas libertas africanas, Maria das Chargas e Maria da Conceição , foram acusadas de fornecer comida aos rebeldes reunidos na ladeira da Praça. As libertas Agostinha e Thereza sabiam que seus homens, Gaspar e Belchior da Silva Cunha, tinhamsido convocados para a guerra e não os denunciou. Mulheres estiveram visitando Lykutan na prisão. Os exemplos se multiplicam. Nenhuma "rainha", porem.
O equivoco talvez tenha um nome legendário e um autor involuntário. O nome Luiza Mahin, o autor seu filho Luiz Gama. Numa carta autobiográfica, atribuida ao poeta e advogdo abolicionista, ele revelou que sua mãe era oriunda da Costa da Mina, escrava e depois liberta na Bahia, onde vivia de uma quitanda. Era também pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã " e, o que mais interessa aqui , "foi presa como suspeita de envolver- se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito". São palavras de Gama , que nada dizem sobre participação especificamente em 1835, um plano que teve efeito. O poeta escreveu ainda que somente depois da revolta liberal separatista de 1837-8, a Sabinada, a mãe seguiu para o Rio de Janeiro, onde ele tentaria várias vezes em vão, encontra-la. O filho seria informado por pretos minas que ela fora expulsa do pais , junto com malungos dela, por prática de adivinhação africana. No poema "Minha mãe ", de 1861, escrito por ocasião de sua última tentativa de encontr´- la no Rio de Janeiro, referiu-se a Luiza como adusta Libia rainha, imagem poética aproveitada por quantos viram a miragem de uma mulher á frente dos malês em 1835.
Se Etienne Brasil não deu nome à sua rainha, Artur Ramos , por exenplo, afirmaria que Luiza "foi um destacado elemento de conspiração entre os escravisados e oprimidos libertos", acrecentando: "Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835", Onde Ramos foi buscar essa informação, desconheço. O autor promoveu o personagem descrito pelo filho: a mãe deixava de ser apenas envolvida nas conspirações bahianas, para nestas torna-se "destacado elemento" e promotora de reuniões malês em 1835 . Mas embora afirmasse ter sido filha de " reis no continente africano", Ramos abstém-se de coroá-la rainha dos rebeldes.
Ramos talves se inspirasse alguma coisa em Pedro Calmon. Este historiador pintou o retrato completo , embora fictício e insuportavelmente preconceituoso, de Luiza Mahin. Em seu romance Malês: a isurreição das senzalas, publicado em 1933, o historiador a fez personagem central, descrevendo-a como bonita e lasciva, como soem ser as escravas no imaginário senhorial. De fato ela seduz um generoso homem da elite branca, dele ganha um filho e a carta de alforria. Apesar de correr nas veias deste filho "toda a nobreza do sangue paterno&quat; ( Calmon), ela quer ver correr sangue de branco no chão da cidade. Mulher ambiciosa e ardilosa, manipula tanto africanos umçulmanos como devotos do camdoblé, e a ambos procura unir para uma revolta cujo único objetivo seria uma vingança pessoal contra os brancos, por a terem arrancado da companhia do pai, um rei do Congo, submetendo-a a toda a sorte de humilhação como escrava, ela que fora nobre em sua terra . Mas acuada pela policia, e para proteger o filho ela termina traindo o movimento .Por meio desta traição, o autor recupera moralmente o personagem, pois para ele a derrota da revol-ta de 1835 significou a vitória da civilização sobre a barbárie.."O livro transpira transpira preconceito étnico/racial em cada pagina."
Entretanto, á revelia de Pedro Calmon, Luiza Mahin se tornaria simbolo do valor da mulher afro-brasleira no Brasil",conforme escreveu. Artur Ramos. "Para confirmá-lo, em em anos recentes ela tem recebido repetidas homenagens do por parte de um dos seguimentos dos afro-brasileiros: movimento dos afrobrasleiros negros, sobretudo da ala femina, por sua suposta atuação destacada na revolta dos malês. Por influência da militânci a, ganhou onclusive nome de praça, não na Bahia , mais na Freguesia do Ó, bairro da cida de São Paulo . Ê também presença na literatura afro-brasileira das ùltimas décadas, reveenciada , com justiça, como símbolo de luta."
O personagem Luiza Mahin, então, resulta de um misto de realidade possível ,ficcção abusiva e mito literário. A rigor , o que dela se conhece tem pouca fundamentação histórica. O que mais se aproxima da história é o pouco que sobre ela escreveu o filho Luiz Gama. Do que este revelou, o envolvimento da mãe em 1835 é até possivel embora os documentos sobre a revolta não o confirmem e indiquem como altamente improvavél seu papel de "liderança".
Nos documentos disponíveis, a liderança malê em 1835 era inteiramente do Gênero muasculino. Seu perfil, porém, demonstra a tendência, digamos, democrática muitas vezes atríbuida ao Islã no recrutamento de seus lideres religiosos e eventualmente políticos.